sábado, 12 de novembro de 2011

Alta Fidelidade: João Gilberto Está Triste






Conhecido como um dos criadores do Novo Jornalismo – em resumo, um misto de narrativa jornalística e literária – Gay Talese, em um perfil sobre Frank Sinatra, cunhou uma expressão característica utilizada até hoje: o resfriado.

Na composição do artigo, Talese não teve acesso ao cantor. Aproveitou-se de amigos e conhecidos ao redor para produzir uma narrativa sem igual sobre o mito de olhos azuis. Frank Sinatra Está Resfriado tornou-se uma referência do novo estilo. De uma comum infecção no trato respiratório surgia uma narrativa inovadora sobre o astro. O resfriado tornou-se sinônimo daqueles que não querem conceder uma entrevista ou são reclusos por escolha. Expressão ainda funcional. Quando um artista prefere manter-se em silêncio, está resfriado.

Há uma semana noticiou-se que João Gilberto estava resfriado, motivo que adiou a turnê de shows em comemoração aos oitenta anos do criador da Bossa Nova. Uma frase que seria simples produz contornos diversos tratando-se do baiano. João gripado é mais do que uma congestão nasal.

Considerado um músico impar que além do talento nato possui apuro pela perfeição, João está inserido em um código antigo, representando um artista com estilo extinto. A figura brilhante, mas envolta em hábitos peculiares. Fundindo realidade e boatos em uma nebulosa que faz parte de sua fama: entra em um palco somente quando suas normas foram rigorosamente seguidas. Não se sente confortável com a recepção de palmas, gritos ou vozes que o acompanham nas canções. Se incomodado, retira-se do concerto sem nenhum problema.

O distanciamento vertical entre público e artista, visto como superior por sua arte e assim louvado, era regência natural na época em que a indústria fonográfica estava em alta. Músicos não só eram populares como representavam símbolos de gerações.

Hoje, estão entre seu público, a procura de dialogo, tentando salvar – ou construir - carreiras que, as vezes iluminadas pela indústria, ruiram com a queda das gravadoras. Espantoso seria se João se adequasse a tal postura. A um homem com seu talento é permitido tais extravagância, sem mencionar o fato de que suas excentricidades são conhecidas dos fãs.

A gripe de João Gilberto também se tornou destaque ao mencionar que o cantor estaria entristecido com o encalhe de ingressos para sua turnê comemorativa. A exceção do Rio de Janeiro, com ingressos esgotados, há lugares disponíveis em todos os shows. Os preços foram motivo de reclamação do público, contrariado em pagar de quinhentos a mil e quatrocentos reais por uma entrada.

As apresentações para um público ainda nanico, quando se esperavam ingressos esgotados, não se justifica apenas pelos preços altos. Se em um dado momento a Bossa Nova e a Música Popular Brasileira representaram o gosto de boa parte do Brasil, hoje é popular apenas na nomenclatura. Fosse o show de uma cantora de axé com bebida e foliões, estaria esgotado no primeiro dia de vendas.

O incômodo de João é justificável. Seu ritmo modificou a música brasileira em grande escala. A alcunha de gigante não é exagero, mas mérito de quem, a partir do samba, produziu um novo ritmo que ao lado do futebol, das mulatas e da caipirinha faz parte do imaginário mundial sobre o Brasil.


João ansiava que sua volta aos palcos fosse celebração estrondosa. Como não foi, gripou-se. Esqueceu de refletir que tal calor do público poderia ser visto com maus olhares a quem sempre foi recluso. A ausência de seu público é tão espantosa quanto sua vontade de vê-los.

As reclamações dos altos preços devem a produção de shows internacionais realizados no país nos últimos anos. Calcula-se de maneira relativa que se artistas estrangeiros fizeram shows acessíveis, os brasileiros deveriam, no mínimo, manter a margem de preços. Sem levar em consideração que tais shows são apresentados em estádios para grande público, ao contrário dos brasileiros sempre em casas menores.

Destaca-se a crença infeliz de que a música produzida no exterior tem mais qualidade do que a nossa apenas por não ser daqui. E tal idéia não se afirma apenas na música, basta observar que o mercado editorial de livros mais pública traduções do que obras originais em nossa língua.

A tabulação dos preços, sem dúvida, transforma a comemoração dos oitenta anos de João Gilberto em um espetáculo direcionado somente a um público específico e com poder aquisitivo evidente. Mas parece razoável a idéia de que, provavelmente, boa parte do seu público tenha verba suficiente para tal.

Incomodo maior do que a quantia para o ingresso é refletir o quanto se leva mais em conta a cultura exportada do que a produzida made in brazil. Ainda mais quando é possível contemplar ao vivo um artista do porte de João Gilberto.

Com sua voz contida, quase a meio fio, e um violão cuja harmonia é perfeita, os shows em sua celebração estão programados para dezembro e, de acordo com informações até agora, gerarão dois registros em DVD.

João Gilberto pode ter gripado, mas volta para tocar seu baião.


Alta Fidelidade, a coluna semanal do criador desse blog. Aqui é possível falar abertamente sobre alguns temas sem que exija uma resenha para tal. Pretende-se abordar todo o tipo de assunto cultural, seja ele sobre literatura, cinema, música e afins.

2 comentários:

  1. Ótimo texto! Acho que você foi a fundo na questão.

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  2. Que engraçado... você publica esse texto no mesmo momento em que o Edu Falaschi, em termos grosseiros, critica a cena brasileira - não, não o público da bossa nova, mas o do metal. Justamente por conta da adoração do brasileiro pelas bandas e músicos estrangeiros.
    Nota-se que não só em um campo musical ou em outro que falta público... Mas pagar 500 a 1000 reais num ingresso é apelar demais, elitizar um estilo que já é muito "diferenciado" nas circunstancias brasileiras.

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