quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Johnny Cash, American VI: Ain't No Grave

Artista: Johnny Cash
Álbum: American VI: Ain't No Grave
Gravadora: American Recording Company
Ano: 2010

Faixas:

01. Ain't No Grave
02. Redemption Day
03. For The Good Times
04. I Corinthians 15:55
05. Can't Help But Wonder Where I'm Bound
06. Satisfied Mind
07. I Don't Hurt Anymore
08. Cool Water
09. Last Night I Had The Strangest Dream
10. Aloha Oe




Era o começo da década de 90 e Johnny Cash estava esquecido pela mídia e pelo grande público. Apenas mais um grande artista antigo, que muitos até consideravam morto. Não é preciso dizer que ele deu a volta por cima. E esta volta começou com sua união a Rick Rubin, então produtor dos discos do Red Hot Chilli Peppers, que se animou em ter a chance de produzir para o velho ícone. Acontece que Rubin propôs algo diferente do habitual a Cash. Propôs que ele misturasse canções próprias com covers de artistas contemporâneos, tanto do country, quanto do rock, dando sua visão pessoal a essas músicas.

Essa idéia, escutada hoje, não parece original, e pior, não parece boa, já que a quantidade de artistas velhos que regravam músicas contemporâneas e simplesmente nos causam vergonha alheia é imensa. Porém uma série de fatores salvou a série American do caminho da breguice.

O primeiro deles é o próprio Rick Rubin, que estava acostumado a lidar com artistas modernos e trabalhar referências, o segundo é a que a escolha das músicas jamais é gratuita e sempre privilegia temas caros ao artista, finalmente o terceiro e mais importante deles é que a visão pessoal de Cash é tão poderosa – e por vezes sombria – que frequentemente obscurece a versão original das músicas, estabelecendo para elas novas versões definitivas.

O 1º American Recordings foi lançado em 1994 e abraçado pela crítica de maneira unânime, mas muito curiosamente foi deixado de lado pelas rádios country que argumentaram que o disco não era country... Essa ‘perseguição’ prosseguiu inclusive no álbum seguinte da série, Unchained, outro sucesso de público e crítica, o que ocasionou a já célebre página de agradecimento de Cash na revista Billboard.


A maneira 'singela' de Cash agradecer
ao apoio da cena Country

Os lançamentos seguintes seguiram o mesmo padrão de covers e inéditas, mas sempre com muita qualidade. American IV: The Man Comes Arounds foi o último álbum em vida de Cash e uma de suas maiores obras primas, tendo ficado célebre principalmente pelo cover de Hurt do Nine Inch Nails, que resultou em uma das melhores gravações dessa década.

Após sua morte, em 2003, 2 álbuns da série já foram lançados de maneira póstuma, aproveitando as gravações deixadas pelo músico. American V: A Hundred Highways e esse American VI que analisarei aqui.

Em seu último disco em vida, Cash encerra com uma música que é extremamente significativa, We’ll meet again (Nos encontraremos de novo), que diz em seu refrão:

‘We'll meet again, don't know where, don't know when,
But I know we'll meet again, some sunny day.’

‘Nos encontraremos de novo, não sei onde, não sei quando
Mas eu sei que nos encontraremos de novo em algum dia ensolarado.’

Ele morreu pouco depois do lançamento do disco e essa música soa como um belíssimo epitáfio, desfiando sentimentos de esperança por um lugar melhor após a morte e por um reencontro com a felicidade. Neste American VI presenciamos um pouco desse ‘reencontro’.

O disco abre com uma poderosa versão de Ain’t No Grave, música folclórica americana. A simbologia trazida pelos versos iniciais que podemos associar com o reencontro prometido no final de American IV:

‘There ain't no grave can hold my body down
There ain't no grave can hold my body down
When I hear that trumpet sound I'm gonna rise right out of the ground
Ain't no grave can hold my body down’

‘Não existe cova que possa conter meu corpo
Não existe cova que possa conter meu corpo
quando eu ouvir a trombeta soar vou me erguer do chão
Nenhuma cova pode conter meu corpo’

É interessante perceber como esse tema religioso e profético, sempre remetendo ao juízo final, se tornou caro à Cash no final da vida. A música título do American IV: The Man Comes Around, já tratava disso, e de maneira até mais explícita, criando uma pequena história do apocalipse. Já nessa faixa a ‘ascensão’ me parece muito mais pessoal. Os sons de gongos e de metal remexido, que remeta à uma pá, aliados à voz gutural de Cash dão mais profundidade ainda a esse tema popular americano.

O disco segue com uma versão da música Remption Day de Sheryl Crow, a versão original dessa música já era muito boa e Cash a deixou mais lenta e novamente investiu em uma interpretação sombria, o que deu maior visibilidade à bela letra da canção. Interessante ver as versões de Cash para músicas que já são originalmente country, diferentemente da maioria das versões da série American, que vem de outros estilos. É incrível como ele consegue emprestar sua personalidade inclusive a essas canções, mesmo sem mudá-las profundamente como costuma fazer com as de rock, por exemplo.

Novamente em For the good times ele revisita um tema já country em sua origem. A canção composta pelo sensacional Kris Kristoffersen (companheiro de Cash no The Highwaymen) trata de um amor que acabou, mas sem qualquer espécie de ressentimento e com o eu da canção se colocando a disposição da antiga amada para recebê-la de volta sempre que ela precisar. Cash interpreta a canção da maneira mais singela possível para o seu tom grave de voz, criando uma bela versão, na minha opinião superior a de Kristoffersen na abordagem da emoção. É interessante também notar que Cash sempre escolhia para seus repertórios musicas com belas letras, profundas e emocionantes, sendo na verdade coerente com o que ele sempre compôs.

A 4ª canção do disco é especial, por ser a única composta por Cash em todo o repertório e também pela significância da letra. I Corinthians 15:55 remete obviamente ao trecho específico da Bíblia (que também serve de refrão à música):

‘O death, where is thy sting?
O grave, where is thy victory?’ (o trecho é retirado da Bíblia do Rei James, que o apresenta nessa ordem, diferente das outras versões, onde o trecho aparece ao contrário)

‘Ó morte, onde está teu aguilhão (literalmente picada, no sentido de ferir)
Ó morte, onde está a tua vitória’

Cash traça aqui, novamente, uma profissão de fé, sempre tangendo o caminho da esperança. O trecho que mais me impressiona é o seguinte:

‘Oh let me sail on
With my ship to the East
And keep my eye on the North Star
When the journey is no good for man or for beast
I'll be safe wherever you are’

‘Deixe-me navegar
Com meu barco para o Leste
E manter meus olhos na estrela do Norte
Quando a jornada não é boa nem para o homem, nem para a besta
Eu estarei a salvo onde você estiver’

É realmente muito bonita a maneira como Cash canta sua fé, de maneira pessoal e íntima, diferente do que ocorre em quase toda a totalidade da música dita Gospel. Ele se apega à sua esperança de vencer a morte – mesmo tema da 1ª canção – e canta isso com todo sentimento. A melodia dessa música lembra uma canção popular, como as que ele já adaptou, e talvez seja, se levarmos em consideração o tema bíblico. Essa música, provavelmente por ser a última composta por Cash, ganhou um tratamento todo especial no encarte, que serve todo para mostrar a seqüência da composição, trazendo fac-símiles dos rascunhos da canção, na letra de Cash.

O disco prossegue com Can't Help But Wonder Where I'm Bound do cantor folk Tom Paxton. Essa canção já recebeu diversas versões, incluindo uma de Simon & Garfunkel, e Cash entrega aqui a versão mais próxima a original de todo o disco. Continuamos a ouvir uma pegada folk (um pouco mais ‘suave’ que o country normal de Cash) que está presente na versão original de Paxton, mudando apenas a voz, já que Cash canta bem melhor.

Satisfied Mind de J.H. ‘Red’ Hayes e Jack Rhodes é outra com centenas de versões, destaco a dos Birds, a de Joan Baez e a de Bob Dylan todas com pegada folk, um pouco diferente do que Cash faz. É claro que continua folk, mas ele revisita antigos temas da carreira, já que sempre compôs músicas que contam histórias, como os clássicos Cocaine Blues, Folson Prison Blues e Sunday Morning Coming Down, assim como músicas que passam mensagens de vida e fazem reflexões. Essa canção propicia a Cash a oportunidade de unir as duas coisas, o que dá à música mais gravidade, fazendo-nos acreditar realmente no que ela diz. Vale destacar que Cash gravou essa versão para a trilha sonora de Kill Bill Volume 2, que foi onde ela foi primeiramente executada.

A música seguinte, I Don’t Hurt Anymore, de Don Robertson e Jack Rollins já tinha uma grande versão, a de Red Foley, mas Cash seguiu por um caminho um pouco diferente, o que me pareceu realmente inteligente. A música tem um cinismo natural que extrapola da letra, e que Cash abraça em certos momentos, diferentemente da versão standard de Foley. De qualquer maneira prefiro a versão de Foley para esta.

Cool Water, de Bob Nolan, 8ª música do álbum é mais um clássico americano (apesar de Nolan ser canadense) imensamente regravado, o que mostra a tendência desse álbum para esse tipo de cover, diferindo bastante do usual na serie American. A versão mais famosa dessa música é a de Vaughn Monroe & The Sons of The Pioneers, verdadeiro clássico western. A versão do álbum usa apenas um violão, diferente dos Sons of the Pioneers, que trazem toda uma gama de instrumentos, inclusive metais na parte final da canção. Novamente Cash transforma a música em algo intimista, sendo que na versão clássica ela é mais uma balada western, que chega mesmo a remeter a antigos filmes de bangue-bangue.

Last Night I Had a Strangest Dream de Ed McCurdy é outro classic folk, com temática pacifista e antibelicista, foi regravada por Simon & Garfunkel, mas a versão original do próprio Ed McCurdy permanece insuperável. Cash arranjou a música de maneira com que a temática de ‘sonho’ ficasse presente, usando uma gaita sutil para criar o efeito, o que causa uma certa desilusão que contrasta com a letra otimista de McCurdy, o que dá o toque pessoal de Cash a esta maravilhosa versão.

Para fechar o disco a escolha mais ‘estranha’ do repertório, Aloha Oe canção tradicional havaiana, composta pela Rainha Lili’uokalani, a última monarca do extinto reino do Hawaii. A gravação mais célebre é – claro – a de Elvis Presley para a trilha do seu filme Blue Hawaii. Cash, que era amigo de Elvis, faz uma versão bem bonita da canção, usando de maneira interessante as cordas para darem um som de ukulele e manter o clima havaiano. Realmente um belo encerramento para um grande disco, investindo numa temática alegre que não está tão presente no restante do disco, coisa que - novamente - me remete ao American IV, que também é sombrio e termina com uma música alegre.

A série American Recording é toda cheia de grandes gravações e criatividade, e nos proporcionou o ressurgimento de um artista brilhante que havia sido esquecido antes de dar todas as suas contribuições para a música. E esse American VI só prova que a qualidade atemporal da música de Cash não acabou nem com sua morte. Em um período tão estéril da música, onde poucos acordes dissonantes fazem ‘salvadores do rock’, é um alento imenso ver a qualidade se erguer da cova.








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